Carla subiu as escadas correndo, poderia se atrasar em qualquer dia menos naquele, era sua aula favorita.

“… Essa pintura está no Livro dos Mortos e aqui vocês podem ver Osíris julgando as ações do finado. Se o coração pesasse mais do que uma pena na sua balança, o cidadão estava lascado. Ia voltar para a Terra…”.

“Fessô, se pesasse o coração da malandragem carioca, neguinho ia voltar abóbora, parede. Isso sendo otimista, porque maioria ia voltar mesmo era barata, rato…”

Alunos e professor riram enquanto guardavam o material e saíam da sala. Carla, irritada, entregou o trabalho ao mestre, que o folheou e o guardou junto dos outros papéis. Marcos esperou a sala esvaziar.

– “Ficou bom o trabalho?”, perguntou, sem graça.

– “Claro que ficou, mas seu nome não está nele”, disse a jovem.

– “Não acredito que você fez isso comigo! Eu vou ficar reprovado por isso, cê sabe disso!”

– “Sim, eu sei!” – Sorriu, maliciosamente. Os dois discutiram.

– “Você vai se dar mal, sua escrota!”.

O dia foi difícil, perdeu sua melhor aula e brigou seriamente com Marcos. Mas que se dane! Perder a amizade dele não foi tão ruim, já estava de saco cheio do jeito dele se dar bem em tudo. Ela sempre estudou e ficava com a fama da chata nerd, enquanto ele, não sabia nada, mas era o respeitável cara mais esperto, o mais malandrito! Achou melhor tomar banho para aliviar seu mau humor. Demorou mais do que o normal porque era o seu momento preferido. Além do mais, se preparava para a festa da amiga mais tarde. Pensou na roupa que iria usar e, enquanto se ensaboava, percebeu uma elevação em sua pele. Parecia uma pequena sujeirinha marrom-acinzentada no seu braço. Envergonhou-se um pouco de seu asseio, ainda bem que viu logo aquela caraquinha antes de mais alguém. Esfregou com a mão, mas a laminha não quis desgrudar. Não tinha mais tempo, enxugou-se. Em outro momento de ducha se limparia melhor.

Festa-tudo-igual-sorrisos-beijos-abraços-bebidas-comidas e tudo terminando com todo mundo dançando ao som de qualquer coisa. Geralmente música funk ou pop que chacoalhasse as pessoas da cadeira. Carla dançou conforme a música. Fábio observava os movimentos descontraídos da namorada, e se aproximou com aquele ar de quem vai fazer uma surpresa. Abraçou Carla por trás e lhe deu um cordão com coração dourado. Carla se pendurou em seu pescoço e, debochada, perguntou: “É ouro? Porque se não for, vai ficar preto logo, logo, e vou saber que me deu coisa vagabunda!”. No fim da festa, a anfitriã e melhor amiga, Sarah, chamou a sua atenção para o braço, “Será que é micose, amiga?”, “Ah, pode ser, vou observar”, completou, sem interesse.

Carla acordou cedo para a sua corrida matinal. Gostava de correr, principalmente, para ouvir a sua respiração contida no peito falar mais alto. Acelerava só para ver como o seu coração responderia àquela situação que demandava uma rápida adaptação, depois diminuía a velocidade, e percebia o relaxamento de seu corpo, achava que poderia até dormir com aquela velocidade. Sentia-se dormindo por dentro enquanto “trotava” porque o ritmo contínuo e lento ajudava. Às vezes gostava de brincar de fazer de conta que o seu corpo era uma casinha, um abrigo. Quando estava frio, durante a corrida, ela fechava o zíper do casaco, e era como se tivesse fechado a janela da sala; quando estava muito calor, vestida de top por baixo, tirava a blusa, e seu peito, costas e sovaco agradeciam, como se tivesse ligado o ar condicionado no quarto. Quando o sol incomodava muito a sua vista, abaixava o boné até cobrir-lhe a testa, e sentia como se estivesse abaixando as persianas da janela, para filtrar o sol quente. Bebia água, mesmo sem parar de correr, e era como se estivesse jogando um balde de água para lavar a cozinha. Ela adorava essa analogia, fazia desde criança toda vez que fazia suas corridas matinais.

Carla trabalhava e estudava, como muitos outros jovens. Tinha alguns amigos e muitos não tão amigos. Não era exatamente um doce de pessoa, estourava-se com frequência e, logicamente, perdia a razão, consequentemente. Sua amiga e conselheira, Sara, era muito paciente com a amiga explosiva, e só por isso não brigavam. O namorado, Fábio, diziam as más línguas que só estava com ela por pena. E também porque Sarah não queria nada com ele. Era uma forma estranha de ficar perto de quem ele realmente gostava. Línguas inquietas e faladeiras…

– Carlinha, você viu o que aquele cachorro disse ontem no BBB? – uma colega de trabalho.

– Eita! Vi não. O que ele latiu?

– Menina, não consigo nem falar! Puta sacanagem o que ele disse… Que gororoba é essa aí? Você que fez?

– É purê de abóbora.

– Passa um guardanapo aí no teu braço, que sujou. Vou lá que o meu horário de almoço acabou…

A caraquinha não saiu com guardanapo, nem cuspe, nem com bucha vegetal. Nem a dermatologista soube o que era ou como a menina se livraria daquilo. Carla não ligaria tanto se não estivesse já cobrindo o braço inteiro. Passou a usar blusa de manga comprida para disfarçar. No inverno foi fácil, mas já estava no começo do verão e ela precisava de uma solução. Ela não era uma pessoa descolada a ponto de bancar aquela pele bizarramente encrostada por uma espécie de “lama”. Todos perceberam que tinha algo errado com a menina. Começou a emagrecer também. Marcos tinha certeza de que era uma resposta da vida, uma reação, um “karma”, do jeito que leram nos livros obrigatórios daquele semestre, sobre os costumes e crenças egípcias antigas. O namorado já estava ficando bem assustado e enojado. Estava se afastando aos poucos.

– Por que você não pode vir hoje? A gente não se vê há um tempão!

– Carla, eu tô para te falar isso, mas não consegui. Olha, não vai dar mais para a gente ficar junto. Desculpa, mas esse negócio aí no teu braço tá me apavorando, sei lá o que é, e você não resolve isso também, e teu humor tá piorando cada vez mais também. Por que você não se cuida, garota?

– Como assim não me cuido? Cê acha que eu gosto dessa meleca no corpo? Simplesmente ninguém sabe o que é. Estão fazendo exames… mas quer saber? Vai se ferrar! Você e seu corpo limpinho, lisinho, parece até que se depila, não tem um pelo! Eu gosto de homem cabeludo, peludo, cheio de barba e pelo no peito, e você aí com essa cara de bebezinho! Sai fora mesmo da minha vida. E leva essa bosta de cordão vagabundo que tá todo preto! Nem ouro é!

– Vai se tratar, garota! Sua louca e bisonha! Sua estranha! Tu tinha era que me agradecer de ter te aturado por 2 meses!

E assim, Carla foi diminuindo seu círculo de amizades. Sua vida social, que já não era muito agitada, foi se restringindo aos poucos até virar um cumprimento com a cabeça ao padeiro e ao funcionário medidor de luz, quando um ou outro batia a sua porta. Um dia, voltando do trabalho, entrou em uma loja de cristais e comprou uma pequena turmalina negra. Deixou sobre a mesa de cabeceira. Ouviu dizer que os cristais “limpavam” o ambiente, era tudo o que precisava, de repente aquela sujeira do braço era mal olhado… Queria muito que a sua vida voltasse ao normal. Na manhã seguinte, ainda na cama, olhou para a pedra preciosa, incrivelmente menor do que o tamanho que havia comprado. Em volta da pedra havia uma camada de pó preto, como se o mineral tivesse se esfarelado na noite passada.

– “Aquieta!” – Uma voz sussurrante parecia estar ali dentro do quarto. Carla deu um salto e olhou embaixo da cama, depois foi ao banheiro, abriu a cortina do box. Não era nada. Ninguém. Achou que estava enlouquecendo. Tomou um banho e voltou para o quarto para se vestir. Ao se olhar no espelho, ficou zonza ao ver o marrom dos braços. Ouviu uma respiração dupla, parecia a dela e de mais alguém. Saiu correndo de casa. Estava enlouquecendo?

Ao entrar na sala de aula, notou que Marcos e Fábio seguraram o riso ao vê-la vestida com moletom em um dia que prometia atingir facilmente mais de 40 graus. Carla tentou ignorar os olhares perplexos e assistir à aula, mas desejando fortemente não estar ali. Pensou na brincadeira da casinha que imaginava que era o seu corpo nos momentos de corrida, mas o refúgio imaginário não deu certo. Desabafou com a amiga, Sarah, contou sobre os braços, sobre a turmalina se esfarelando na noite passada e até sobre a voz que ouviu. Disse que precisava viajar, mergulhar numa cachoeira, estava à beira da loucura, não entendia o que estava acontecendo com ela. Sara era a única pessoa com quem podia contar, pediu que fosse junto, e a amiga se solidarizou. Marcos e Fábio, sentados na fileira de trás das meninas, trocaram olhares cúmplices, ao ouvir a conversa.

O fim de semana demorou, mas chegou. Sarah tentou se manter calma quando viu Carla tirar a camisa e short, e mergulhar no poção verde-esmeralda. O biquíni vermelho sobressaía nas águas claras, ao lado dos braços marrom acinzentados. “Carla, você precisa de ajuda. Amiga, eu nunca vi uma coisa dessas! Você só foi ao médico quando estava no começo, eles não viram o que estou vendo agora”. Carla não respondeu, apenas ficou imóvel boiando. Não queria perder a paz que estava sentindo, depois de tantos dias horríveis. Após alguns minutos, disse à amiga: “Sarah, pela primeira vez, estou me sentindo em casa. Detesto o jeito que todo mundo me olha no trabalho, na faculdade, em todo o lugar. Sei que todo mundo quer falar da minha pele, mas ninguém toca no assunto! Fingem que tudo está bem, mas sinto a repugnância das pessoas! Você não imagina o que é isso! Estou até enlouquecendo! Ouvindo vozes”.

– Caraca! Literalmente! – Marcos apareceu pulando as pedras para se aproximar das jovens. Fábio veio logo atrás. Carla olhou desesperadamente para a amiga. – Você sabia que eles vinham, Sarah? – Claro que não!

– Sinceramente, a gente queria ver de perto a aberração. Aliás, vim para registrar o momento! – Marcos tirou o celular do bolso da bermuda. Carla saiu da água e correu para dentro da mata.

– Que merda é essa, Marcos? E você, Fábio? Francamente! A menina tá cheia de problemas, e vocês querem piorar tudo? – Sarah, inconformada, foi procurar a amiga. Cansada da busca e de gritar seu nome, voltou para o mesmo lugar onde Marcos e Fábio estavam.

– Ué, cadê ela? – Marcos perguntou, começando a se preocupar.

– Não achei. Por favor, me ajuda! – Sarah pediu, desesperada.

Os três procuraram a jovem por várias trilhas, em vão. Um sentimento de pesar grande cobriu o pequeno grupo. Em meia hora o sol se poria e eles sabiam que não seria possível andar naquele parque sem iluminação.

Em outra parte da floresta, no alto, Carla andava, vagarosa, contornado o rio, passando por cima das pedras. Suas pernas foram ficando cada vez mais pesadas. Com dificuldade, subiu até a parede de cima da cachoeira. De lá, viu os amigos procurando por ela. “Por que isso está acontecendo comigo?”. Por outro lado, ela sentia que sabia a resposta. Um cansaço foi lhe tomando os braços, pescoço, cabeça, pés. Fez de conta que o corpo era a sua casinha e ficou quieta, só respirando e parando os movimentos, parando de pensar, parando de ouvir, de ver, de sentir. Olhou mais uma vez para baixo, para Sarah, Marcos e Fábio, que não a perceberam, e seu rosto permitiu que lágrimas lhe lavassem a tristeza. Aos poucos, um sentimento confuso de resignação e alegria foi lhe preenchendo e paralisando o corpo. Ainda conseguiu ver maravilhada um feixe de luz do sol penetrando as copas das árvores da bela floresta, e depois mais nada.

Os jovens partiriam sem Carla. Estavam juntando suas coisas para ir embora. Ficaram em silêncio, atônitos e assustados com o rumo das coisas. Fábio, com lágrimas nos olhos passou o braço em volta de Sarah e falou baixo. – “ Sarah, vamos, temos que ir na polícia”. – Já estou indo, me deixa só um minuto”. Os rapazes respeitaram a dor da amiga e foram andando de volta, pela trilha da saída do parque. Sarah, com um último olhar no entorno da floresta, parecia suplicar que a mata devolvesse a amiga. Viu ao longe, no alto, uma pedra diferente que chamou a sua atenção. Ao se aproximar, notou uma cor marrom acinzentada familiar, de alguma forma. Seu coração se acelerou com a loucura do seu pensamento, mas àquela altura, tudo já era absurdo. Abaixou-se na pedra e notou umas marcas avermelhadas no mineral. Lágrimas correram por seu rosto. Deitou-se sobre a pedra, de braços estendidos. Ficou alguns minutos apenas ouvindo o barulho das águas em volta. Compreendeu aos poucos:

– “Seja feliz, minha amiga! Em sua nova casa! Seja uma pedra feliz!”