Já revirei os livros de história atuais e não achei nada sobre a verdade na luta pela independência na Bahia, em Ilha de Itaparica. Por que, meu povo? Parece que foi ontem…
Boiando, Maria tenta olhar o céu com os olhos abertos, mas não consegue, sem que isso a cegue, e desiste, mergulhando até o fundo do rio. Ri dessa brincadeira que insiste nela desde sempre. Emerge das águas acalentadoras, surpreendendo sua amiga Jupira com um jato de água de sua boca chafariz. A amiga reclama enojada, mas Maria se diverte ainda mais com a repulsa da tupinambá. Outros olhos também gostariam de entrar na brincadeira, sem que as belas jovens saibam. Outros corpos se deliciam com o desejo que nasce daquela visão paradisíaca. Outros braços querem, com força, a mesma felicidade e as meninas. Maria sente uma presença estranha e avista à beira do rio três homens fardados que contemplam sua seminudez preta. Avisa Jupira com o rosto e ambas saem do rio, vestem-se e vão embora, com cautela de quem é caça. Por sorte, não é dia do caçador.
– Ó freguesa, ó freguês! Hoje tá em conta. Hoje é o dia! Vamos aproveitar o preço bom! – Maria vende bem seus peixes e mariscos. Junto com o embrulho vai também um bilhetinho e um olhar indicativo. A feira está lotada como sempre. Homens, mulheres e crianças pretas, brancas, indígenas, misturam-se com os homens-vigia que se esquecem todos os dias de que somos “livres” para trabalhar, morar, amar e sonhar. Essas pessoas com uniformes militares insistem em adentrar nossos lares, onde não são mais bem recebidos, onde não há mais espaço que suporte a dependência nociva. Subitamente, um tiro é ouvido, depois outro e mais outro. Todos correm para abrigar-se. Maria, temerosa, mas confiante, termina seu embrulho e o entrega à última cliente do dia, que sorri e agarra os mariscos e o bilhetinho de esperança – Obrigada! Estarei lá.
O galpão velho está cheio de gente. Alguns estão conversando, sentados no chão, enquanto outros estão afiando suas facas, como Marcolina e Joana; outros testam suas pontarias com flechas, outros fazem capoeira, e eu monto trincheiras para proteger nosso comércio local. O lugar é uma resistência, não de guerrilheiros propriamente mas, majoritariamente, de mulheres pretas e indígenas, e também alguns homens jovens e velhos, todos cansados de ver seus negócios particulares violados por soldados portugueses surdos de propósito, que não aceitam a independência do Brasil já anunciada há quase um ano. Não vão embora, não sabem a hora de parar. O galpão é um lugar para pensar no que fazer.
– Não, Maria. Dessa vez não estamos com você. Isso é loucura demais. Mulher, você quer que a gente acabe morta? E nossos filhos? Nossos pais?
– Jupira, me diz uma coisa, quantos peixes você vendeu hoje?
– Uns três.
– Por que só isso? O mar não tava bom ou você não conseguiu vender em paz seu pescado? Marcolina foi para a feira com 2 cargas de mariscos. Voltou sem nada. Pergunta para ela onde está o dinheiro do trabalho dela.
– Mas a gente não é soldado. A gente sabe usar a faca para tirar as escamas dos peixes, não para enfiar na barriga desses desgraçados, Maria!
– Tem que escolher, Jupira. É matar ou morrer de qualquer forma. Eles não vão embora.
Um silêncio paira no galpão, mas as palavras de Maria ecoam em todos os aflitos. Ela é puro orgulho na Ilha de Itaparica. Seu corpo alto, forte e batalhador encoraja qualquer pessoa que a olhe nos olhos. Maria não foge de seu compromisso, nunca. É mulher que se divide em milhares de partículas que se espalham com facilidade e grudam na boa gente. Maria é brasileira, de ofício e de nascimento, escrava liberta como a grande maioria dos pretos, na ilha. Comerciante, vende mariscos, mas dá de graça seu sorriso; deseja verdadeiramente um bom dia para você e para mim e para todos que querem ver a sua terra progredir com honestidade. Ela é gente comum, o que quer dizer, ela é preciosa. Ainda assim, não pode exigir que lutem com ela. A reunião acaba e todos vão para a casa, levando consigo o medo, a dúvida e a sensação de impotência. O de sempre.
A noite cai triste. Maria está caminhando para casa, quando para defronte à casa de Jupira, onde uma menininha tupinambá brinca chorosa. Faz círculos no chão com um galho de cansanção. Maria corre e lhe tira a planta da mão.
– Araci, menina, não brinca com isso não! Cadê sua mãe?
– Ela foi trabalhar. – Diz a lindinha descabelada. Maria se compadece, pega a pequena no colo.
– Não fica triste, sua mãe vai voltar para brincar com você, logo, logo. Mas promete que não vai mais encostar nessa planta, ela queima, criatura! Isso é cansanção. Ela mata de dor… – A criança ameaça chorar. Maria age rápido e pergunta se ela sabe o significado do seu nome, e a menina nega, interessada. – Bem, Araci significa deusa do amanhecer. Se você ficar triste, o sol não vai querer sair amanhã. E o que faremos sem sol? E o nome da sua mãe, Jupira, significa planta que alimenta. – A pequena ri, e recupera seu bom humor, alimentando todas as fantasias que permitem seus 7 anos de vida. Maria, por outro lado, se entristece. Uma menina deveria brincar com sua mãe. Jupira é pescadora e está começando a vender seu corpo para completar o orçamento doméstico, por não poder trabalhar na feira o tempo que precisa para o sustento de sua família. A tropa colona está cada vez mais dificultando a vida que já não é fácil há mais de trezentos anos para os nativos brasileiros, e também para os trazidos à força nos navios negreiros.
Todos precisam alimentar suas almas e Maria deixou a sua faminta por um tempo e isso está começando a lhe tirar o vigor. Não sabe mais se deve lutar ou não contra os militares portugueses que se fincam cada vez mais na ilha, como sanguessugas do litoral da Bahia. Eles querem tomar Salvador por esta via, pela Ilha de Itaparica, mas ela é apenas uma mulher pobre e negra, escrava liberta. Quem é Maria, não é mesmo? Quem sou eu? Quem é Marcolina? Pobres mulheres pobres e invisíveis. Grande mesmo é apenas nossa vontade de ver os colonizadores longe. Em um momento de fraqueza, que assola qualquer um, corre nas veias de Maria o medo de sua consciência e coragem guiarem-na para um duro caminho sem volta. Infelizmente, sua vida ainda poderá piorar; o inferno está tão perto… Do jeito que está, consegue se desvencilhar dos infortúnios, mas se lutar e perder, e ainda sobreviver, sua vida se limitará apenas a respirar, se o ar não lhe pesar tanto. E ela sabe que pesará.
Um homem de meia-idade bate à porta da casa da idealista – Maria Felipa! Maria Felipa! – O tio não tem cara de boas-vindas e reclama da ausência da sobrinha, que não está mais participando das cerimônias de capoeira do terreiro onde frequentam, há tempos imemoriais.
– Tio, desculpa, mas tenho trabalhado muito. Tá todo mundo sem tempo. A gente tem que trabalhar na hora que dá. As pessoas só vão à feira quando os militares não estão por perto, mas os homens estão cada vez mais na ilha, estão entrincheirando tudo por aí.– Por isso mesmo você tem que dar o teu jeito de comparecer à cerimônia. Minha sobrinha, essa é a nossa resistência e você está dando mal exemplo. Daqui a pouco ninguém mais vai praticar capoeira e vai ser o fim da nossa cultura. Já pensou nisso? Isso é tudo o que resta da nossa identidade e dignidade, Maria Felipa.
Maria sente uma voz arrancada do coração, que lhe sobe à cabeça. “Claro! Para vencer, só se luta com as habilidades que se têm”. Seus olhos brilham. Uma ideia surge.
– Tio, você tem razão. Já sei onde e quando vamos fazer a próxima roda. Avisa para todos, e diga também que amanhã, na feira, os meus mariscos estarão pela metade do preço. Vão entender que eu tô chamando para a gente se encontrar no galpão. Quero todo mundo lá.
O tio avisa a comunidade. Todos vão à feira e voltam com seus mariscos revolucionários. A reunião acontece e a vida corre por algumas semanas. Amanhece vários sóis e anoitece várias luas, até que hoje, nasce um dia especialmente novo, que parece guardar um segredo que poderá ser o começo da verdadeira independência brasileira em Itaparica.
Todos estão eufóricos com a festa programada no terreiro. Quase toda a ilha está presente, homens, mulheres, pretos, brancos, escravos libertos, indígenas, mas os convidados especiais têm reservados os seus lugares em aconchegantes esteiras com tapetes macios e acolhedores, feitos exclusivamente para eles, os queridos soldados lusitanos, ansiosamente esperados por nós, anfitriões gentis. Um a um chega e toma seu assento. Os tambores começam a tocar. Os corações se unem na mesma batida e as solenidades começam com os agradecimentos pela presença dos militares, que estão ali para defender a nostálgica terra brasilis de usurpadores abomináveis de outros cantos do mundo: “O que seria do Brasil sem os portugueses? Como o Brasil poderia se tornar verdadeiramente independente, se não consegue se defender sozinho? E tem mais, uma terra de indígenas sem governo branco seria um lugar sem cultura e civilização brancas, sem religião e negócios europeus. Enfim, seria uma terra de gente primitiva sem a visão do Deus católico! E ninguém estaria salvo por Ele após a morte! Ganhamos espelhos, educação, algumas armas de fogo, bebidas…. tudo isso são maravilhas as quais não conheceríamos sem os colonos! Aprendemos a negociar nossas florestas e a vender nossas árvores em troca do dinheiro branco, muito importante para o progresso de uma vida civilizada branca. Sem delongas porque a lista de agradecimentos é grande, vamos logo brindar e celebrar os ensinamentos que recebemos da nossa Colônia. Saúde!”. Todos aplaudem e bebem, efusivos, ao ouvir meu belo discurso. Os capoeiristas apresentam-se com muita maestria, parecem empurrados e amparados pelo vento e gravidade, fazendo da luta preta uma grande dança aos olhos da gente branca. Lágrimas correm nos olhos dos praticantes em cada salto, rasteira e gingado nessa dança, que nunca foi pacífica. Os soldados europeus não captam tais sutilezas, mas o que devemos esperar deles, além de que nos disciplinem e nos vigiem e nos protejam? As mulheres pretas e indígenas começam suas apresentações particulares também, oferecendo mais e mais bebidas aos convidados ilustres, que se encantam pelas peles de cores jamais sonhadas em sua terra natal. Suas curvas corporais inebriam os militares, já vermelhos pelo álcool e pelo desejo. Para não haver acidentes, suas armas são cuidadosamente postas ao lado, em troca, recebem tratamentos dignos de reis.
– Tira toda a sua roupa agora. – governa Jupira, enquanto o obediente servo branco atropela o tempo para tirar as botas. Completamente despido, o trôpego militar português rasteja e mendiga o toque da mulher dourada, que finca um pé na sua garganta, enquanto pega um gordo galho de cansanção e lhe surra o peito, pernas e braços. O ingênuo acha que é uma espécie de fetiche porque nem se defende. Em poucos minutos, o homem pede para morrer, por não suportar mais tanta ardência no corpo – ônus de quem abandona o posto de sua embarcação. Outras mulheres orquestradas por Jupira fazem o mesmo, baixando a guarda dos varões.
Enquanto isso, Maria e nosso grupo não têm dificuldades em aproximar-se dos navios fantasmas atracados no cais, já que as tripulações estão tratando de negócios com a gente brasileira, em terra firme. Cuspindo fogo primeiramente pelos olhos, Maria e eu iniciamos nosso cerimonial, incendiando várias partes do assoalho que pode ter trazido seu avô e também seu pai, do Sudão, e meus pais também. Imagino como devem ter sido aqueles quarenta dias amarrados no convés, com fome, sede, medo, doentes, sem futuro para pensar, sem presente para viver, sem terra para pisar. Outras mulheres pretas fazem o mesmo em outros navios. O fogo cumpre o seu duplo dever de destruir as embarcações portuguesas e libertar ancestrais das correntes que ainda prendem os netos e netas, bisnetos, tataranetos, em vários aspectos de suas vidas. Ainda falta muito para queimar, mas Maria não para. Jupira não para. Marcolina não para. Eu não paro. Pretos e pretas da Ilha de Itaparica não param. O Brasil não para. E ninguém deve parar mesmo. Não se deve deixar apagar as chamas, enquanto existirem navios de homens que aprisionam vidas, sonhos, futuros, presentes e passados pretos e brancos brasileiros, e também africanos. Não se deve aprisionar nossa história verdadeira.
Maria Felipa de Oliveira, ao ver os navios em cinzas, olha para mim e ri alto:
– Não acredito que conseguimos, Brígida!
– Quem disse que uma andorinha só não lidera um verão, e não pode abater uma frota de 40 navios portugueses na Ilha de Itaparica, durante a luta da Independência da Bahia, Maria? Por que não? – Rio de volta para a minha companheira de lutas.
Desculpem não ter me apresentado antes, sou Brígida do Vale, mas isso faz diferença? Vocês vão se lembrar dos nossos nomes, afinal? Dos nossos feitos?