Nunca guardei um potinho sem a sua devida tampa, tampouco a tampa sem o seu devido potinho. Não dormiria direito se soubesse dessa desarmonia no meu armário de cozinha. Essa declaração ofendeu ou surpreendeu você? Talvez não porque todo mundo tem algum comportamento um pouco diferente, o que faz com que aceitemos as esquisitices do outro. Porém, até que ponto? Qual a zona limítrofe entre você aceitar uma conduta e voar no pescoço do outro? Ignorar uma atitude e cancelar o amiguinho ou interná-lo? Você se considera pessoa normal? Quem disse?
Ontem um morador de rua estava sentado no meio-fio da calçada, revirando uma sacola preta de lixo, de onde ele pretendia descolar o seu almoço, quando de repente passou ao seu lado um cara estranho, bem vestido, com enormes fones, cantarolando uma música evangélica a uma altura perturbadora para todos os ouvidos, religiosos ou não. O homem em situação de rua imediatamente lançou um olhar inquisitivo para aquele sujeito de comportamento bizarro, e procurou em mim aprovação para constatar de que se tratava de um louco. Eu assenti com a cabeça, e me juntei ao julgamento do ocupante da calçada. Fui embora para casa, o louco prosseguiu berrando sua música, e o sem-teto voltou aos trabalhos de selecionar o menos podre possível para comer. Quando abri a porta de casa, meus conceitos se embaralharam. Senti vergonha de julgar uma pessoa talvez feliz que transitava pela rua livremente. Por acaso, não seria o louco o morador de rua comendo lixo e discriminando alguém que cantava alto? Não seria a louca eu, morrendo de vontade de dar pitaco na vida do outro? Por que ninguém acha extraordinário ver alguém revirando lixo para comer? Talvez porque seja normal ver pessoas mendicando nas calçadas desde épocas medievais. Por outro lado, não é todo dia que vemos pessoas resolvidas (pelo menos em alguns instantes), que andam com sorriso no semblante, e não se importam se desafinam, amor! O que é ser são?
Não sou boba, procurei quem pudesse me responder com propriedade. Fui na fonte, fui no Bruxo do Cosme Velho, e peço desculpas para os spoilers de O Alienista que darei a seguir. A personagem de Dr. Simão Bacamarte, grande psiquiatra que tentou desvendar os mistérios da loucura, buscou por anos marcar o território da insanidade, rastrear os seus primeiros passos, mas até mesmo esse especialista que estudou tanto a ciência clássica e moderna ocidental, e até a arabesca, não obteve êxito. No princípio, parecia simples separar o joio do trigo, qualquer pensamento, trejeito, riso estranho, contemplação demais, tudo fora do padrão científico de se viver era considerado comportamento transviado, logo, o sujeito considerado louco, portanto, era encelado. O problema foi constatar que três quintos da população de Itaguaí, onde se passava o experimento do cientista, estavam internados na Casa Verde, hospital de tratamento dos infelizes ou felizes. A conclusão do sagaz alienista (assim chamado o psiquiatra da época) foi inverter o sentido de loucura, pois o normal era ser louco. Deu alta para todos os pacientes, e passou a buscar nas ruas os conscientes demais, sãos demais, com faculdades mentais muito plenas, esses, obviamente, deveriam ser cuidados, e foram devidamente recolhidos para a adequação de vida do novo normal. Após a recuperação destes, surgiu-lhe a dúvida de que talvez ele mesmo fosse o único louco. Trancafiou-se na casa de repouso para se autoanalisar, e de lá não saiu vivo.
Com essa obra, Machado de Assis nos presenteou no passado, quando foi lançada, no presente, e no futuro, porquanto enquanto houver humanidade, assuntos humanos interessarão a pessoas de faculdades mentais medianas, pois sabe-se que loucura demais, sanidade demais, ciência demais, religião demais, tudo isso é demais e adoece. Não dá. Dito isto, pergunto mais uma vez, você se acha normal? Se sim, vai concordar que se acomodou ao incômodo de ver alguém catando lixo para comer, pois a injustiça social nos permeia por todos os lados há séculos; vai aceitar que as coisas são como são, por isso o planeta está à beira de um colapso ambiental, portanto, de que adianta chamar a coleta seletiva, se todo o lixo vai parar nos oceanos mesmo? Parabéns, amiga, amigo, você ganhou a medalha olímpica e honorífica de pessoa normal! Palmas! Não te julgo, sou normal também. Fomos criados para sermos normais. A notícia boa é que certas fagulhas de loucura nos queimam, por vezes, e durante esses lampejos de fogo, conseguimos fazer algo de insano, ajudamos algum necessitado, não deixamos arrancar árvores, essas manias de doido mesmo, o que nos equilibra, de certa forma. Ainda nesse estágio de pura doideira, conseguimos achar medonha aquela esquisita que anda publicando nas redes sociais que trabalha mais de 8h por dia, e depois ainda arranca energia para atividade física, lazer, afazeres domésticos, etc., resolvendo tudo num só dia comprido de 30h, exibindo seu orgulho pela superprodutividade, esperando aprovação e virar espelho, jurando que você também consegue. Por ora, paro por aqui. Vou latir por aí.
A sua ótica e analise da loucura e normalidade foi excelente,afinal quem de fato somos???
sei lá,todos nós temos que ter um pouco da chamada “loucura”para sobrevivermos a esse mundo “!!!
Sim, precisamos ficar atentos à chamada “lucidez” 🙂
Amei, amiga!
Quem não se assume louco, é que não é normal! Rs
Pois é, mas a rigidez não deixa muita gente refletir sobre o assunto, amiga! 😉
Texto excelente!! Ótima reflexão para começarmos a semana.
“De médico e de louco, todos temos um pouco” .
Exatamente! Sabe que ultimamente sinto que a vitamina C tem me feito rir mais! 😉
O Alienista é leitura obrigatória no primeiro período de toda faculdade de Psicologia que se preza, exatamente por levantar o questionamento sobre o que é a loucura e o que é nosso olhar para o mundo. Foucault fala de forma brilhante da construção da loucura ao longo dos séculos. Tema fascinante pois nos faz pensar, na loucura (para além da aprisionada pela psiquiatria), como um estado de rebeldia dentro de um todo ordenado. A loucura parte sempre de um conflito interno, vide os dois “personagens” do texto, onde um busca algo onde não existe este algo para outros e o outro, passando dos limites com sua possível alegria (vide que Freud já dizia que todo excesso esconde uma falta). Enfim, tema para se conversar durante horas. Bacana o texto e o recorte feito em uma situação vista. Olhar de uma cronista social.
Que bom que gostou, Fernando! Acredita que nunca li O Alienista nem para o vestibular?! Só desfrutei recentemente desse texto ácido e engraçado do Machado. Amei tudo por ali: a loucura, a sanidade, a inversão de cada uma, a sociedade buscando remédios e respostas fixas para perguntas eternas, rs. Colocar um ponto final em qualquer questionamento profundo só mostra um excesso de controle que esconde uma falta dele, do jeito que você citou o Freud. Obrigada pela leitura!;)