– Oi, boa tarde! Você sabe dizer qual o ônibus que eu tenho que pegar para ir para Tijuca?

– Esse que está parando agora serve.

– Obrigada!

Subi no ônibus sem me certificar do seu itinerário ou o seu número. Apenas entrei. Estava cansada nesse dia, cochilei um pouco. Depois de um certo tempo, notei que já era para eu ter chegado no destino, 9 km não era tanto assim, ainda que houvesse engarrafamento, não passaria de 40 minutos. Tive a impressão de que estava há horas naquele transporte. Não reconheci o entorno, parecia uma zona rural, mas era impossível ter uma área rural no meu trajeto de zona norte carioca. Estava quase escurecendo, não conseguia ver direito o local, com iluminação parca, um poste longe do outro e quase sem estabelecimentos comerciais. Saltei junto com a grande maioria, já que tive medo de ficar mais tempo no ônibus, e me perder ainda mais.

– Por favor, que lugar é esse?

– Bairro Paciência – disse uma mulher simpática.

Simplesmente fui para o lado oposto do que eu intencionei. Tentei manter a calma e dissimular meu pânico.

– Puxa, peguei o ônibus errado, você sabe dizer que ônibus eu pego para voltar para o Centro ou Zona Norte?

– Querida, a essa hora os ônibus não param mais aqui, é perigoso, tem muita violência e roubo por todo lugar, sabe. Você tem que comprar bilhete na rodoviária, que não é perto, se você for andando. Olha, eu moro perto, você pode vir comigo, e eu te dou uma carona até a rodoviária.

– Ah, muito obrigada! – Eu quase abracei aquela estranha simpática, que me acolhia daquela forma.

Enquanto andávamos pensei quão absurdo era eu estar em um bairro três vezes mais longe do meu itinerário. O crepúsculo impedia que eu visse detalhes ao meu redor, mas vislumbrei montanhas ao longe, e uma campina muito perto e, sob meus pés, uma rodovia esburacada, deserta.

A mulher simpática quase não falava, e eu já não achava mais seu sorriso tão acolhedor como antes. Ela tinha razão, sua casa era bem próxima. Ela abriu o portão de madeira, que parecia que desmoronaria a qualquer toque mais forte. Vi a sombra de um carro pequeno, um fusca. Ela entrou no carro e ligou a chave de ignição. O barulho alto do motor ressoou naquele descampado. Consegui controlar minha tensão, até eu observar o esforço que o veículo fazia para dar ré porque os pneus estavam quase totalmente enterrados. Raízes de árvores também lhe cobriam e obstruíam a sua arrancada. Minhas pernas vacilaram quando constatei que aquela mulher não tirava aquele carro do lugar por meses, pelo visto. Não sei por que, mas isso me apavorou. Do jeito que ela ofereceu carona, parecia que dirigia com frequência. Olhei para o seu rosto, e ela abriu um estranho sorriso, o que foi suficiente para eu não querer mais a carona. A mulher já estava conseguindo tirar o fusca, quando corri desesperadamente para fora de sua casa. Corri, corri, sem parar e sem olhar para trás, até alcançar um feixe de iluminação, que deveria ser o “centro” daquele ambiente ermo.

Um pouco aliviada, entrei numa espécie de galeria ou centro comercial, onde vi uns gatos pingados de gente. A primeira coisa que eu faria quando chegasse em casa seria dar uma googleada para saber por qual portal eu entrei, para estar naquele inferno! “Pura loucura”, pensei enquanto me aproximei do guichê, procurando minha carteira na bolsa. Para a minha pior surpresa, o atendente fechou o balcão na minha vez. Pendurou uma placa escrita “fechado”, com letras garrafais. Ainda bati na janela, em vão. As pessoas foram rareando por ali. Sentei-me no chão, na frente da bilheteria, sem saber o que fazer, com o coração acelerado. Uma mão no meu ombro me fez dar um salto de susto.

– Fujona! Eu procurei você por toda a parte! – A mulher da carona não desistiu de mim.

– Você é esquisitaaaa! – Gritei e saí correndo de novo. Dessa vez, olhei para trás e vi a doida parada, me olhando e rindo alto. O “centro” estava apagando as luzes. Por que não estava com meu celular, meu Deus? Nunca andei sem celular! Ligaria para casa, ligaria para a polícia, para o bombeiro, ia postar no instagram! Eu tinha a localização, o resgate seria rápido… enquanto corria naquela escuridão, tropecei naqueles buracos da estrada, rolei até uma ribanceira e caí em um rio. Embora estivesse escuro, percebi coisas boiando ao meu redor. Bostas. Era esgoto a céu aberto, não era rio. Nadei naquela água fétida o mais rápido que pude e atravessei para o outro lado. Comecei a subir um morro. Não foi preciso luz para eu saber que vivia o meu apocalipse! As montanhas que eu vi quando desci do ônibus não eram montanhas, era um aterro sanitário. Eu estava em um lixão! Precisei me acalmar. Não era tão absurdo assim, tudo aquilo. Muitas pessoas viviam perto do lixo, aterro sanitário, ruas sem infraestrutura, sem esgoto… o Brasil que ninguém gostaria de ver, mas é real também. Eu estava numa área miserável, e me esforcei para recapitular o que aconteceu até aquele momento, não precisava ficar com medo daquela mulher aparentemente louca, mas que de repente estava tentando me ajudar! Ela viu que eu estava perdida, assustada, e tentou me ajudar. Tá bom, calma. Precisava ficar calma. Mas e se aquela mulher fosse louca mesmo?

Desci o morro e andei em direção a uma casa com um muro alto na frente. Bati no portão e chamei, “olá”. Um casal de bêbados me atendeu. A mulher estava vestida apenas com uma cinta muito apertada, andava como um robô porque seus membros inferiores não conseguiam se mover direito. O homem, por sua vez, andava à vontade com short tactel barato e sem camisa, exibindo uma enorme barriga de cerveja. Pareciam não se surpreender com uma estranha à porta, e fizeram um sinal para eu entrar. Fui adentrando um grande quintal com música muito alta. O som era irritante, mas àquela altura era um oásis para mim, que queria mesmo era estar com o máximo de gente possível, para eu me sentir segura.

O cenário foi mudando, à medida que vi todas as mulheres da festa com aquela mesma cinta, algumas desmaiando, sem ar, outras rastejando, tentando se mover, enquanto os homens riam de seus sofrimentos. Fiquei com medo daqueles homens, mas para a minha surpresa, as mulheres rastejantes e robóticas me notaram e vinham em minha direção, vagarosa e penosamente. Pintadas com uma maquiagem borrada e forte, pareciam palhaças sinistras. Procurei rapidamente o portão da casa para sair daquele hospício, não iria encarar aquelas zumbis vivinhas, mas antes que eu alcançasse o portão, a mulher do fusca mais uma vez me encontrou e bloqueou a saída, com um sorriso muito exagerado. Ela também estava com aquela maquiagem medonha e a mesma cinta das comparsas.

– Queridinha, que bom que resolveu ficar! Você vai gostar dessa festa… – Disse, enquanto se aproximou de mim. Ela era pequena e frágil, resolvi encarar a esquisita e segurei os seus braços, mas um terceiro logo surgiu, e um quarto, e um quinto e um sexto. Não consegui lutar com tantos braços, mas peitos ela só tinha dois e eu sabia que bolada no peito doía muito. Chutei um deles com tanta força, que ela recuou um pouco. Bem, pelo menos os peitos eram humanos! Avancei para o portão, mas a coisa de seis braços me enlaçou. Éramos só nós duas agora, e eu, imobilizada por aquela criatura-gente.

– Somos todas mulheres em busca da perfeição e da beleza. Usamos cintas para a gente ficar sempre linda, com corpos desejáveis para os homens. Você não acha que estamos lindas? – Perguntou, com um olhar tristemente demoníaco, enquanto me fitava. Uma gosma branca foi derramando sobre sua boca, como um vulcão entrando em erupção. Senti que era o meu fim, não tinha mais como fugir. Ela foi se aproximando cada vez mais de mim e me apertando. Apenas fechei os olhos para não ver minha morte nos olhos da monstra.

“Oooooohhhhhnnn” – Uma espécie de sirene tocou. Parecia um aviso de perigo para aquelas pessoas estranhas. Todos foram embora para suas casas, homens, mulheres, até a aranha mulher fechou a boca e foi recuando rápido com um olhar de puro ódio. Foi entrando para um buraco no quintal. Percebi uma gota do líquido branco no meu braço. Não era ácido como eu pensei, era chorume branco. Quase vomitei com aquele cheiro maldito. Saí da casa e subi o morro mais uma vez, para ter uma melhor percepção de onde eu estava.

O sol nasceu e, junto com ele, catadores de lixo começavam o bom trabalho da coleta seletiva, separavam utensílios que lhe serviriam para venda ou para uso próprio. Vi crianças e velhos se arriscando naquele mundo de perigo verdadeiro. Eu estava tentando formular um pensamento racional diante de tudo o que vivi na noite anterior. Nada fazia sentido. Eu só queria ir para a Tijuca, mas fui parar no inferno. Uma mulher de seis braços me perseguiu e passei boa parte da noite fugindo dela e de suas súditas de cinta! E agora estava no meio de um lixão. Pegaria um ônibus para casa, mas o que eu faria com essa experiência? Iria me internar? Estava louca?

– Querida, você está bem? Precisa de alguma ajuda? – A mesma voz da mulher esquisita, porém vindo de uma criança de mais ou menos 12 ou 13 anos, me interpelou.

– Joaninha, menina, vem logo! Para de ficar brincando sozinha, garota! Tá na hora de trabalhar! – A mãe da pré-adolescente falou, aborrecida.

Congelei com o “brincando sozinha”. Olhei com atenção para aquela menina, vi o seu braço sujo com um líquido branco, o mesmo da aranha-gente. Ela usava sobre o vestido uma cinta que provavelmente encontrou no lixo, pois era velha, rasgada e aparentava um número muito maior do que aquele que o ser mirradinho vestia. Coisa de criança.

– A gente se vê mais tarde, agora eu tenho que trabalhar – A jovenzinha me disse, enquanto se afastava. Um panfleto de uma propaganda de construção de um condomínio na Tijuca caiu de suas mãos, quando a menina correu para se juntar à mãe, que reprimiu a filha com o olhar. O marido, ao lado, terminou de beber uma garrafa de cachaça, e observou, de forma tirânica e controladora, mãe e filha revirando o lixo.

Compreendi tudo! Entendi por que eu não tinha celular; entendi por que eu peguei um ônibus na Tijuca e acabei parando no Bairro Paciência, onde nunca existiu um aterro sanitário daquele porte; entendi o rio de bosta, a montanha de lixo, a falta de saneamento básico, a péssima iluminação pública… tudo fez sentido para mim. Joaninha era uma menina que trabalhava no lixão, junto com os pais. Tinha uma vida dura demais para uma criança. A única possibilidade daquela pequena se libertar da difícil realidade era por meio da imaginação. E eu fui a imaginação dessa menina! Eu fui a sua história e o seu alento diante de toda a miséria que a cercava.

– Sim, Joaninha, a gente se vê mais tarde!